A descoberta e a reedição da primeira receita conhecida de gin

Escrito por Philip Duff

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“Como assim, realmente fez? Tipo, fez de verdade?” Eu olhei estupefato para Jean-Sébastien Robicquet e bebi em um gole só todo meu Negroni.

Nos seis anos que o conheço, ele rejeitou um grande número das minhas idéias, quase sempre entre um Negroni ou dois. Algumas delas – como La Quintinye Vermouth Royal – vieram a se concretizar, outras não. A sua companhia, EWG Spirits & Wine, tem crescido exponencialmente, e eu tenho estado bem ocupado também. Qualquer idéia que não parecia ser factível desde o início, provavelmente não se tornaria mais factível com o tempo, então nós abandonamos. Mas então, havíamos discutimos esse tópico em particular antes...

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Em 2009, eu conheci Audrey Fort (no Tales of the Cocktail, já que você perguntou), na época gerente de desenvolvimento de marketing & negócios da EWG, que assinou como cliente da minha pequena empresa de consultoria on-trade, Liquid Solutions, e assim começamos. A primeira coisa que fiz foi mergulhar de cabeça nos livros. Existia alguma história de gin com uma base de uvas, como a marca emblemática da EWG, a G’Vine? Acontece que existia e não somente a bem conhecida Menorcan gin Xoringuer, cuja história começa no final dos anos 1700. Não, o quê eu descobri foi mais longe, bem, bem mais longe.

Eu estava vivendo por 14 anos na Holanda nesta época, então eu já era capaz de ler holandês. Eu achei um livro chamado "Genever nos Países Baixos" (Jenever in de Lage Landen ), somente publicado em holandês no ano de 1996, e esgotado. É um livro magnífico, uma adição digna da biblioteca de qualquer amante de destilados, imaculadamente pesquisado e comentado por seu autor, o professor Eric van Schoonenberghe. O professor van Schoonengerghe é muito da escola Indiana Jones de professorar, além de ser um dos principais especialistas europeus em destilação e fabricação de cerveja. Ele pessoalmente treinou três gerações de destiladores da propriedade familiar, a destilaria Filliers em Baarle-Nassau (Bélgica), e fundou o Museu Genever, em Hasselt (Bélgica), quanto o Museu Genever em Schiedam (Holanda).

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Nesse livro, van Schiinenberghe escreve sobre uma receita que ele achou nos Manuscritos Sloane, parte do legado de 100.000 exemplares dos artigos científicos e itens deixados à nação britânica por Sir Hans Sloane em sua morte, em 1753. A coleção de Sloane era tão grande que necessitou ser alocada no Museu Britânico, que em seu devido tempo separou os livros na Biblioteca Britânica.

Esta receita era chamada "Om Gebrande Wyn te Maken" ou “fazendo vinho queimado”. Em seu livro, van Schoonenberghe explicou que acreditava-se que a receita – pela análise do dialeto – deveria ter sido escrita na região de Arnhem/Apeldoorn na Holanda, datada em 1495, e com ingredientes específicos para uma bebida botânica destilada do vinho. O destilado tem uma incrível matriz de botânicos, ainda mais se considerar que, em 1495, mais de um século antes das companhias holandesa e inglesa das Índias orientais fossem fundadas, todas essas exóticas especiarias deveriam ser carregadas à mão para a Holanda, através da Silk Road, vindo da China e Ásia. No entanto, a receita contém noz-moscada, canela, galanga, pimenta de Java, cravo-da-índia, gengibre, sálvia, cardamomo e zimbro, a maioria macerado ou destilado em uma base de vinho, quase certamente da região de La Rochelle/Charente, onde Cognac é situada.

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Até aí, tudo bem, mas nada muito excitante. A história tem diversas receitas como essa e, na verdade, a enciclopédia de Jacob van Maerlant te Damme, de 1269, Der Naturen Bloeme detalha receitas para cozinhar os frutos do zimbro no vinho, mas puramente no contexto de ser um medicamento. Johannes van Aaltier tinha uma receita semelhante, em 1351, mas que era enfaticamente medicinal, inclusive ele a escreveu durante uma epidemia de peste.

Ninguém sabe quando o remédio ser tornou recreação, mas é justo dizer que a prática teria sido iniciada pelos ricos e os decadentes. O tipo de pessoas cuja receita para um lote de 10 litros começava com 12 unidades de noz-moscada, que era mais valiosa do que ouro, e incluía quase tudo que era caro e obscuro, em termos de botânicos, que a Índia Oriental e Ásia tinham para oferecer. A sálvia e o zimbro eram os ingredientes locais mais baratos, no que a esta altura chamávamos de Gin 1495. Nós sabíamos que essa não era uma receita medicinal, porque estava entre as receitas de cozinha e comida. Há várias receitas de medicamentos no livro – o título principal no Manuscritos Sloane é Caminhos Medicinais – mas a nossa receita de gin não está lá. Outro dado muito importante.

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Apenas um ano antes, em 1494, foi dada a um certo Frade John Cor, na Escócia, uma grande quantidade de malte para fazer água vitae para o rei, um registro visto como a primeira prova escrita para fazer uísque para fins não medicinais. Três anos depois, em 1497, os destilados estavam sendo tributados pelas autoridades de Amsterdam. Quando Casper Jansz Collhaes publicou A Guide To Distilling na Holanda, em 1582, a base padrão para destilados já era grãos e não uvas. Coolhaes, escreveu que os destilados de grão não só eram chamados de vinho de conhaque ("bandy wine"), mas também estavam sendo “pagos e bebidos como se fossem vinhos de conhaque”.

A equipe da G’Vine ficou encantada por ter desenterrado não somente uma prova histórica do gin à base de uva, mas também uma contribuição muito importante para a historia dos destilados de zimbro. Generosamente, eles me deixaram publicar essas informações, que tornaram-se parte importante da história do gin. Isto serviu também, tenho o prazer de dizer, para desacreditar o mito do Doutor Sylvius, sobre um professor da Universidade de Leiden (ou professores, dependendo a quem você perguntar) que inventou o genever. Van Schoonenberghe desmantelou esse mito facilmente. Então, eu viajei pelo o mundo, dando treinamentos sobre gin, mencionando 1269 (van Maerlant), 1495 e como Sylvius (que existiu, mas nunca fez coisa alguma com genever, o qual já estava sendo tributado quando ele tinha meros 17 anos de idade) não era o cara. Bons tempos!

Então veio o fatídico bate-papo. A idéia tinha sido combatida antes: colocá-lo na garrafa de G’Vine e vendê-lo como uma edição especial? Dar presente para um grupo de elite de amantes de gin em torno do mundo? Fazê-lo em garrafas PET e enviá-lo para embaixadores de marcas e representantes de venda, para usá-los em seus treinamentos?

Dessa vez foi diferente. Eu vi um brilhos nos olhos de Jean-Sébastien que eu já havia visto antes. O Gin 1495 iria acontecer.

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Primeiramente, nós recrutamos Dave Wondrich. Além de uma barba impressionante e uma casa cheia de livros, Dave sabe mais do que qualquer homem vivo sobre velhas receitas de destilados e ele tem um bom histórico no rejuvenescimento delas. Nós decidimos que Dave e eu discutiríamos sobre uma réplica exata da receita do 1495, que logo seria chamada de “Verbatim”. Foi pensado que deveríamos também colocar a nossa própria assinatura na coisa, então decidimos fazer também uma segunda versão. Construindo sobre a base de Verbatim, um painel que além de mim estavam Dave Broom, gaz Regan, Gary Sharpen (da Cocktail Lovers) e Holly Motion ( da Drinks International) adicionado de um pouco de angélica, mais sálvia, mais zimbro e uma pequena nota de casca de cítrico, para criar o que foi chamado de “Interpretatio”.

O processo foi, antes de mais nada, mais divertido que a pesquisa. Eu e Dave lutamos sobre a receita. Era claro o suficiente, mas, em uma época aonde segredos comerciais era a única maneira de se manter empregado ou não, o quê o destilador haveria omitido da receita? Nós tentamos imaginar quem era esse destilador, 519 anos atrás: homem ou mulher? (bem possível que tenha sido mulher, pois fermentação e destilação era parte das atividades da equipe da cozinha nas grandes casas da época). Quem era o chefe da casa? (dado os botânicos raros, nós apostamos em ser um rico, bem relacionado comerciante, mas poderia ter sido facilmente um aristocrata; a Holanda tinha o suficiente deles naquela época). O quão freqüente era feito? Provavelmente a cada um ou dois meses, dependendo de quantos convidados o chefe da casa gostaria de receber e impressionar. Como seria o gosto para alguém de 1495?

Esta era uma época em que qualquer botânico simples, exceto a sálvia e o zimbro, era completamente desconhecido ao paladar europeu e o único adoçante que alguém iria ter era, talvez, um pouco de mel. Havia açúcar na Europa nos anos 1400, mas era caro como cravos-da-índia e a noz-moscada ( isso é, tão caro por grama quanto ouro) e se eles tivessem adicionados à receita do 1495, é certeza que o mestre iria ter insistido em que fosse mencionado na receita, pois transbordaria riqueza e ostentação. Nós podemos assumir que algumas partes importante foram cortadas, para manter seguro o segredo do destilador, que garante sua importância no processo.

Após um almoço demorado em Villevert, matriz da EWG, Dave Wondrich achou uma solução para um dos nossos problemas, que vem mostrar que cerveja e o bife tartar são aspectos negligenciados da criatividade. A receita começa com “vinho e/ou a mãe dos vinhos”, que pode se referir as borras (levedura residual morta e outras sobras de quando vocês destila vinho) ou bagaço, a pele e os talos deixados depois que você pressiona as uvas durante a fabricação de vinho. Dave sugeriu então misturar Marc (destilado à base de bagaço de uvas). Sob o olhar atencioso de Jean-Sébastien, nós fizemos isso e a receit ficou perfeita. Verbatim estava pronto! Era sexta em Cognac. Hora do vinho. Mas primeiro, um Negroni de celebração.

No final de semana, Dave voou de volta para o Brooklyn e voltei para Londres para me encontrar com o segundo painel, mais Jean-Sébastien e o gerente sênior da EWG. A agência havia arranjado algo extraordinário: nós iríamos à Biblioteca Britânica para ver o manuscrito original. Como o nosso guia daquela manhã explicou, a Biblioteca Britânica é uma biblioteca que funciona normalmente e não um museu de livros, então nós poderíamos vê-lo. Isso foi incrível.

Quando eu entrei no lugar, meu pensamento imediato foi “Ah que bom. Eles nos deram uma cópia – não preciso me preocupar em não derrubar café em cima” (esse pensamento não irá surpreender ninguém que já tenha jantado comigo). Mesmo do outro lado da sala, eu podia ver que aquele pequeno volume de couro tinha páginas brancas limpas, claras e uma cor vibrante no texto. Eu mencionei que era todo escrito à mão? O grupo juntou-se ao redor e eu apontei os pontos principais: uma margem rabiscada “de aqua vina”, logo à esquerda do título “Om Gebrande Wyn Te Maken”, e a palavra crucial “gorsbeyn”, que van Schoonenberghe identificou como zimbro. Isso confirmou que estávamos olhando para a única cópia conhecida da mais antiga receita de gin para fins não medicinais do mundo, uma receita de gin que pré-datava a criação da própria palavra “gin”.

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Close-up do manuscrito Making Burned Wine com, cerca de 10 linhas do topo, no centro da imagem, as palavras "gorsbeyn of dameren".

No final, me permitiram ler a receita e fiquei impressionado, pois era exatamente a mesma descrição que havia em "Genever In The Low Countries". A compulsão em exibir a riqueza possuída pelas pessoas que encomendaram esse livro não tinha parado no gin: as receitas haviam sido escritas por um escriba no que o curador da Biblioteca Britânica descreveu como o papel mais caro disponível naquela época e por isso ele ainda parece fresco, novo e a tinta está colorida, ainda pouco desbotada. Era lindo. É lindo. Vá e veja.

Depois de uma rápida parada no Museu de Genever em Schiedam, na Holanda, para contextualizar o Gin 1495, fomos adiante para Cognac para a segunda rodada: Interpretatio.

Mesmo com prodigiosas quantidades de tartars, escargots, cervejas, Negronis e Bourdeaux, esta foi uma tarefa bem mais complicada. Nós tivemos alguns experimentos memoráveis com alto conteúdo de sálvia, com alto teor de cítricos e com outros que eu prefiro não mencionar. Próximo do final da semana, Jean-Sébastien, que tem um paladar muito refinado, começou a trocar olhares preocupados com Didier, que estava a cargo dos alambiques. No final, nos inclinamos para concentrações suaves de cascas de cítricos, íris (que deu um maravilhoso e suave aroma agrícola), sálvia e zimbro. Mais uma vez, tentamos nos colocar no lugar do destilador há cinco séculos atrás. Numa sala cheia de criativos profissionais de bebidas urbanas, acostumados a sair do padrão, demorou muito tempo para percebermos que menos era mais e que o destilador teria ficado feliz em fazer apenas alguns pequenos ajustes à excelente receita inicial, como nós estávamos fazendo. Interpretatio era um fato.

Durante tudo isso, Jean-Sébastien foi constante: nunca interferindo, mas sempre pronto para nos dar a sua sincera perspectiva sobre o mais novo destilado. Como dono da EWG, ele ficou famoso por ser o produtor da vodca Ciroc para Diageo. Ele é um destilador de primeira classe, um enólogo de profissão e, pessoalmente, criou não apenas o gin G’Vine, mas também o licor June, La Quintinye Vermouth Royal e (junto com Carlos Camarena) o tequila Excellia. Sua maior contribuição ainda estava por vir, contudo: em discussões com ele e as agências, foi decido que o Gin 1495 seria o seu presente ao mundo do gin. Um máximo de 100 edições em um enorme livro de capa de couro no estilo Hogwarts, que se abre com um botão secreto, para revelar uma amostra de Interpretatio e Verbatim, além de uma cópia do texto. Apenas para ser leiloado para caridade, sendo as duas primeiras em benefício da Benevolent, casa de caridade do Gin Guild.

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A embalagem final do Gin 1495

Cópias adicionais do Gin 1495 foram doadas para o Museu de Genever, na Holanda e Bélgica, o Ginstitute (Londres), o Museum of the American Cocktail (Nova Orleans) e para as experiências dos visitantes das outras grande marcas de gin, se eles assim permitirem. E se isso não é o suficiente, a EWG também pagou para o texto do original “Om Gebrande Wyn Te Maken” ser digitalizado e colocado no arquivo online da Biblioteca Britânica, disponível para o mundo inteiro ver. É meu desejo que isso estimule mais pesquisa sobre as origens dessa categoria que nós todos amamos e – quem sabe? – também exista uma receita ainda mais antiga.

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